A discussão sobre a educação domiciliar no Brasil tem sido marcada por discursos que exaltam liberdade, autonomia familiar e inovação pedagógica. Contudo, uma análise aprofundada evidencia que a prática não se sustenta como alternativa educacional legítima, revelando-se, ao contrário, um fenômeno articulado pela mercantilização da educação, por interesses privados e por grupos ultraconservadores empenhados em capturar políticas públicas para fins ideológicos. Os riscos associados ao homeschooling extrapolam a esfera individual e configuram uma ameaça ao sistema público de educação, à proteção integral das crianças e adolescentes e ao próprio pacto democrático que estrutura o direito à educação no País.
A educação domiciliar não constitui novidadepedagógica, tendo sido praticada no Brasil colonial e imperial como privilégio das elites, especialmente em contextos nos quais a escolarização pública começava a se consolidar como direito social. Nesse sentido, o homeschooling representa a retomada de uma forma privatizada e excludente de instrução, incompatível com o modelo constitucional de 1988, que define a educação como direito universal, de natureza pública e orientada pelo princípio da igualdade de condições de acesso,permanência e finalização dos estudos na escola. A proposta de institucionalizar a educação domiciliar, portanto, caminha na contramão da construção democrática da educação brasileira.
O contexto recente demonstra que a expansão do homeschooling está profundamente vinculada à lógica neoliberal, que converte direitos sociais em serviços e reduz progressivamente a presença do Estado. Nesse cenário, observa-se a consolidação de um amplo mercado educacional privado, baseado na venda de apostilas, plataformas digitais, tutores, cursos, certificações e eventos direcionados exclusivamente a famílias interessadas em retirar seus filhos das escolas. Essa mercantilização da educação desloca a responsabilidade pública para o âmbito individual e familiar, transformando o estudante em consumidor e a aprendizagem em produto.
A formação desse mercado, além de intensificar desigualdades sociais, fragiliza a escola pública e os profissionais da educação, pois contribui para a deslegitimação de seu papel social, reduz matrículas e disputa recursos do orçamento público. Como consequência, compromete-se a luta por financiamento adequado, pela valorização e formação dos docentes e pela garantia de infraestrutura digna para todas e todos.
A experiência vivida por crianças, famílias e profissionais de educação durante a pandemia de Covid-19 evidenciou, de forma incontornável, os limites estruturais e pedagógicos da educação domiciliar. Mesmo contando com o apoio do Estado, com atividades remotas organizadas pelas redes de ensino, com a mediação dos professores e com a manutenção de vínculos escolares, milhões de estudantes enfrentaram dificuldades significativas de aprendizagem, aumento da desigualdade educacional, perda de desenvolvimento socioemocional, isolamento, ansiedade e queda no rendimento. Professores relataram exaustão, impossibilidade de acompanhar adequadamente cada estudante e redução drástica da interação pedagógica.
As famílias, especialmente as de menor renda, vivenciaram sobrecarga emocional e laboral, ausência de infraestrutura, falta de conectividade e impossibilidade de assumir o papel docente. Estudos realizados após a reabertura das escolas confirmaram que a educaçãodomiciliar forçada produziu retrocessos graves na alfabetização, na socialização e na saúde mental de crianças e adolescentes. Se mesmo com apoio institucional o ambiente doméstico se mostrou incapaz de garantir aprendizagem plena, acompanhamento qualificado e proteção integral, torna-se evidente que a educação domiciliar, sem apoio, sem regulação, sem profissionais e sem a estrutura da escola, não atende ao interesse superior da criança e não pode ser considerada alternativa educacional válida.
Na dimensão política da educação domiciliar, amplamente documentada pela imprensa, intensifica as preocupações. Recentemente, parlamentares de extrema direita apresentaram ao Congresso, por meio de emenda, a proposta de incluir o homeschooling no texto do novo Plano Nacional de Educação (PNE), o que provocou forte reação de especialistas, entidades da educação e sociedade civil. A manobra, segundo críticos e juristas, é inconstitucional e representaria um retrocesso civilizatório, já que conflita com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. A tentativa provocou obstrução da votação do PNE na Comissão Especial, reavivando o debate público e alertando para os riscos de normalizar a educação domiciliar. O episódio evidencia que a pauta do homeschooling não é uma demanda isolada de famílias, mas parte de um plano político para redefinir quem deve educar: o Estado ou grupos privados com interesses ideológicos e de mercado.
Instituições que comercializam materiais para educação domiciliar frequentemente se apoiam em conteúdos produzidos por organizações de viés ideológico, econômico e revisionista, cujas narrativas distorcem fatos históricos, negam consensos científicos e promovem modelos de sociedade subordinados a dogmas religiosos. A instrumentalização do homeschooling por esses grupos evidencia que sua expansão não representa uma simples escolha pedagógica, mas integra uma estratégia de captura ideológica e de desmonte do caráter laico, científico e plural da educação pública. Trata-se de um projeto que, ao mesmo tempo, busca moldar cultural e educacionalmente a sociedade e garantir a manutenção de ganhos financeiros por meio da criação de um mercado privado altamente lucrativo.
Do ponto de vista jurídico, o STF consolidou o entendimento de que a educação domiciliar é incompatível com o ordenamento brasileiro sem regulamentação específica e que tal regulamentação deve respeitar princípios constitucionais como o da proteção integral, da convivência comunitária e do interesse superior da criança. Esses princípios não se coadunam com a modalidade de ensino que retiram crianças e adolescentes da escola e dificultam o acompanhamento pedagógico, psicossocial e protetivo realizado por profissionais da educação. A escola desempenha papel central na identificação de situações de violência e negligência, compondo uma rede de cuidado essencial para a infância. Ao deslocar o processo educativo para o espaço privado e sem controle público, o homeschooling enfraquece essa rede, compromete a segurança de crianças e adolescentes e intensifica vulnerabilidades já existentes, sobretudo entre famílias menos favorecidas.
A defesa da educação domiciliar, portanto, não responde a necessidades reais da sociedade brasileira, tampouco se alinha a evidências pedagógicas consistentes. Ao contrário, ela representa uma convergência entre interesses de mercado, agendas políticas antidemocráticas e concepções privatistas de educação que afrontam o projeto constitucional de democratização da escola. Em um país profundamente desigual, no qual a escola pública constitui espaço fundamental de convivência, proteção, cidadania e pluralidade, qualquer proposta que fragilize sua centralidade implica grave retrocesso social.
Diante desse cenário, a iniciativa da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara Municipal de São Paulo, ao apresentar o Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 10/2025, constitui medida necessária, coerente com o ordenamento jurídico e alinhada aos princípios constitucionais que estruturam o direito à educação. O PLO 10/2025 reafirma o compromisso da cidade com a educação pública, democrática e socialmente referenciada ao vedar a prática da educação domiciliar no âmbito municipal, resguardando a proteção integral de crianças e adolescentes, a convivência escolar como espaço formativo e a responsabilidade do Estado na garantia do direito à educação. Trata-se de uma iniciativa que não apenas responde aos desafios contemporâneos, mas reafirma o projeto histórico de defesa da educaçãocomo pilar da democracia, rejeitando modelos que privatizam direitos, transformam a infância em mercado e condicionam a formação humana às lógicas sectárias de grupos extremistas. Ao inserir essa vedação na Lei Orgânica, a bancada do PT fortalece institucionalmente a educação pública paulistana e contribui para salvaguardar o caráter republicano e universal da escola frente às pressões privatistas e ideológicas que buscam desestruturá-la.
Em última instância, o enfrentamento aos desafios educacionais brasileiros exige menos ruptura e mais cooperação. A defesa da escola pública não se opõe às famílias, mas se constrói com elas, reconhecendo que a aprendizagem e o desenvolvimento integral de bebês, crianças, jovens e adultos dependem de uma ação conjunta baseada no diálogo, na escuta e no compromisso compartilhado. A experiência histórica demonstra que quando Estado, sociedade e famílias trabalham de forma articulada, com políticas de valorização profissional, ampliação de infraestrutura, acompanhamento pedagógico qualificado e participação comunitária, a educação avança, a confiança se fortalece e as oportunidades se ampliam.
E reafirmar o papel essencial da Educação e da escola sob gestão pública é também celebrar o lugar das famílias como aliadas fundamentais, não substitutas, mas companheiras de jornada na formação das crianças e jovens. Quando unimos o cuidado familiar ao compromisso coletivo da escola, materializado no Projeto Político-Pedagógico (PPP) de cada unidade educacional inserida nos diversos territórios da cidade, tecemos uma rede de confiança e esperança capaz de sustentar cada passo do aprender. É nesse diálogo contínuo, tecido pela escuta, pela presença e pela corresponsabilidade, que floresce um sistema educacional verdadeiramente inclusivo e democrático. Assim se fortalece a gestão democrática: no encontro generoso entre comunidade, escola e sociedade, onde o futuro se constrói em comum.



