Um programa de desestatização envolve uma gama de variáveis complexas e problemas que exigem um debate amplo e profundo. A Câmara Municipal de São Paulo não deve discutir e votar o tema de forma açodada. Deliberar sobre o assunto a toque de caixa só serve aos interesses propagandísticos e eleitorais do prefeito tucano.
Desde 1989, com a eleição de Collor, o liberalismo exacerbado vem ganhando força na agenda política como alternativa hegemônica de ajuste ao Estado brasileiro. A estagnação econômica observada a partir da crise da dívida na década de 1980 e a imposição das ideias presentes na cartilha do Consenso de Washington constituíam o pano de fundo para um ataque contra um Estado tido como inchado, letárgico e intervencionista. A reforma desse Estado e a revisão do seu papel foram vendidas como caminho para o reencontro do país com a modernidade.
As privatizações, um dos principais componentes desse processo de ajuste, ganharam força nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso. O seu Programa Nacional de Desestatização desencadeou um debate exacerbado e opositores ao projeto foram taxados com alcunhas associadas ao atraso. A mídia nativa ecoava tais difamações como estratégia de propaganda com o intuito de minar resistências.
O programa foi instituído por lei, assim como o fez o presidente Collor em 1990. Possuía um caráter genérico e atribuía as decisões a um conselho formado por ministros de Estado e pelo presidente do BNDES que, de forma autocrática, operavam a desestatização sem qualquer transparência ou discussão pública. Quem se opusesse era tratado como inimigo. A partir desse período, nota-se que o debate político ficou caracterizado pela estratégia de defenestrar o opositor, independente do argumento utilizado.
Pior para o país, pois esse debate não se dava somente entre forças de direita e esquerda, mas principalmente entre liberais e desenvolvimentistas. Até mesmo no governo havia ministros que defendiam um Estado forte e sugeriam a correção de rumos que preservasse os interesses nacionais.
Havia visões antagônicas sobre o projeto de Nação. Mais do que uma resistência à privatização, tratava-se de compreender quais decisões fortaleceriam a capacidade do Estado em promover o avanço das forças produtivas e a justiça social. A privatização não pode ser defendida como uma ideologia que de maneira simplista se opõe ao que é público e considera o setor privado mais competente para desempenhar determinadas funções.
É essa a ideia que o atual prefeito João Doria tenta reintroduzir em São Paulo. Depois do golpe parlamentar de 2016, o projeto político derrotado quatro vezes consecutivas nas urnas voltou a ser implementado em âmbito federal e encontra eco no município de São Paulo com a reedição do mesmo ímpeto dos anos 1990.
A bancada do Partido dos Trabalhadores teme que o projeto a ser enviado à Câmara reflita essa visão ideológica simplista e repita os erros do Programa de Desestatização do governo FHC, o qual não voltou a ser defendido nem mesmo pelos candidatos presidenciais do PSDB. Razões para esse esquecimento seletivo não faltam, como o fato de empresas terem sido vendidas muito abaixo do preço de mercado, caso da Companhia Vale do Rio Doce; ou o setor de telefonia, que resultou em uma das maiores tarifas pagas pelo usuário no mundo; além de questões negociais que levaram os agentes desse processo “ao limite da irresponsabilidade” (entre aspas, por citar o grampo do ex-diretor do Banco do Brasil à época).
Nesse sentido, a oposição não deve ser feita a um projeto somente pelo seu caráter privatista, mas sim a uma visão de Estado que condene a cidade e o país a um papel subordinado ao setor privado naquilo que determina seus rumos. Definir se a propriedade de bens permanece pública pode ser considerado secundário perante a compreensão da finalidade para qual se reorganiza o Estado.
Ao apresentar o vídeo promocional “O maior programa de privatização da história de São Paulo” com uma cidade em liquidação, na verdade, o que se está vendendo é a imagem de um prefeito que pretende se colocar no debate nacional como um privatista, cujo intuito é lançar-se a uma plateia ávida por soluções fáceis aos desafios nacionais. Vende-se, assim, o setor público como problema, sendo que, de fato, sem ele não há solução.
O esboço de projeto de lei que circula na Câmara Municipal copia a estrutura do Programa de Desestatização apresentado no governo FHC. Se aprendessem com os erros do passado, não reproduziriam um processo apressado e sob encomenda para o lucro de alguns grupos empresariais. Da mesma forma, não enviariam um projeto com uma autorização genérica para um programa sem tê-lo debatido com a sociedade. Assim, os vereadores não podem dar um cheque em branco para se dilapidar o patrimônio municipal.
O prefeito tem dito que será realizado um conjunto de mais de cinquenta concessões, citadas em vídeos ou em entrevistas, sem, no entanto, terem sido detalhadas. Cada uma delas deveria ser submetida a um estudo de viabilidade, esgotando-se todas as alternativas de receitas a serem exploradas pelo setor privado e definindo-se as obrigações contratuais. Esse balanço entre receitas e obrigações é que define se algo é passível de concessão ou de uma parceria público-privada (PPP). A diferença entre as duas modalidades é que no primeiro caso a prefeitura recebe recursos partilhando os lucros projetados e, no segundo, ou seja, com as PPPs, a prefeitura deve pagar uma contraprestação periódica. Nesse caso, as PPPs exigem fundos garantidores dessa contraprestação.
Os fundos garantidores são o principal problema para se viabilizar PPPs, pois o setor privado não quer correr o risco de não receber seus recursos. Tem sido dito que esses fundos serão formados colocando-se terrenos e prédios públicos como garantia. Que terrenos são esses? Aqueles comprados pela gestão Haddad para a produção habitacional? E os prédios públicos, seriam os que estão em uso pela educação e saúde ou seriam os teatros municipais?
Se eventualmente os estudos referentes a tais serviços apontarem que a prefeitura precisaria pagar uma contraprestação, como pode ocorrer no caso de parques ou bibliotecas, parte da renda do município ficará comprometida pela obrigação de pagamento consignado em um contrato que pode ter duração de décadas. Até que ponto esse comprometimento do orçamento municipal seria aceitável? Isto é, dependendo do resultado dos estudos de viabilidade, pode ocorrer um engessamento do orçamento ou mesmo um resultado nulo entre a receita das vendas e as despesas com a contraprestação, o que frustraria inclusive o possível uso desses recursos para as áreas de saúde e educação.
Durante a gestão petista à frente da prefeitura, houve a elaboração de um conjunto de estudos como a concessão do Estádio do Pacaembu ou a alienação do Anhembi. Também publicamos o edital da PPP de iluminação pública. Os estudos e debates relativos a esses temas exigiram um bom tempo de maturação e são tidos como referência para outros municípios. Tais processos contaram com a participação do setor privado, mas as decisões estratégicas foram tomadas por agentes públicos. Aliás, essa é outra preocupação que se deve ter quando o prefeito dá sinais de utilizar parcerias e doações de forma indiscriminada. Quem será responsável por auferir esses estudos? Como evitar a contaminação dos interesses privados em decisões estratégicas? Enfim, existe um conjunto de questões a serem aprofundadas.
Se o atual prefeito tem tamanha fixação pela parceria, sugerimos uma pauta alternativa que conta fortemente com o setor privado. Afinal, no pacto federativo, regular o espaço urbano é especificidade da atribuição municipal. Por meio dela seria possível estabelecer um conjunto de parcerias utilizando-se como instrumento as operações urbanas consorciadas, as quais, de forma inteligente, dividem os lucros com a valorização territorial e são capazes de reorientar os vetores de crescimento da cidade.
A ansiedade privatista do prefeito e sua pressa em abandonar a cidade em busca de seu projeto de poder o impedem de compreender as potencialidades de São Paulo, que poderia dar uma resposta nesse cenário de crise nacional do emprego, da qual seu partido é sócio. Ele nem sequer cogita, por exemplo, fazer da maior metrópole do hemisfério Sul um vetor de enfrentamento da agenda do emprego. A gestão Haddad deixou R$ 10 bilhões em contratos assinados que, segundo parâmetros do BNDES, poderiam gerar mais de 530 mil empregos. Além disso, há um estoque de terras capaz de retomar os projetos habitacionais, o que poderia resolver tanto a questão do desemprego como a do déficit de moradias.
Em suma, um programa de desestatização envolve uma gama de variáveis complexas e problemas que exigem um debate amplo e profundo do assunto, pois dependendo das escolhas feitas o prejuízo para a sociedade pode ser irreversível. A Câmara Municipal de São Paulo não deve discutir e votar o tema de forma açodada. Deliberar sobre o assunto a toque de caixa só serve aos interesses propagandísticos e eleitorais do prefeito tucano.
Antônio Donato é vereador em São Paulo pela quarta legislatura; atualmente é líder da bancada do Partido dos Trabalhadores. Liderou a campanha que elegeu o prefeito Fernando Haddad, em cuja gestão exerceu o cargo de secretário de Governo. Também presidiu a Câmara Municipal nos anos 2015 e 2016
Roberto Garibe pertence à carreira federal de gestor governamental, foi secretário Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras na gestão Haddad, na Prefeitura de São Paulo
Fonte: Teoria e Debate